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sábado, 3 de dezembro de 2011

Emmanuel Kant: Vida e Obras

Kant nasceu, estudou, lecionou e morreu em Koenigsberg. Jamais deixou essa grande cidade da Prússia Oriental, cidade universitária e também centro comercial muito ativo para onde afluíam homens de nacionalidade diversa: poloneses, ingleses, holandeses. A vida de Kant foi austera (e regular como um relógio). Levantava-se às 5 horas da manhã, fosse inverno ou verão, deitava-se todas as noites às dez horas e seguia o mesmo itinerário para ir de sua casa à Universidade. Duas circunstâncias fizeram-no perder a hora: a publicação do Contrato Social de Rosseau, em 1762, e a notícia da vitória francesa em Valmy, em 1792. Segundo Fichte, Kant foi "a razão pura encarnada".
Kant sofreu duas influências contraditórias: a influência do pietismo, protestantismo luterano de tendência mística e pessimista (que põe em relevo o poder do pecado e a necessidade de regeneração), que foi a religião da mãe de Kant e de vários de seus mestres, e a influência do racionalismo: o de Leibnitz, que Wolf ensinara brilhantemente, e o da Aufklärung (a Universidade de Koenigsberg mantinha relações com a Academia Real de Berlim, tomada pelas novas idéias). Acrescentemos a literatura de Hume que "despertou Kant de seu sono dogmático" e a literatura de Russeau, que o sensibilizou em relação do poder interior da consciência moral.
A primeira obra importante de Kant - assim como uma das últimas, o Ensaio sobre o mal radical - consagra-o ao problema do mal: o Ensaio para introduzir em filosofia a noção de grandeza negativa (1763) opõe-se ao otimismo de Leibnitz, herdeiro do otimismo dos escoláticos, assim como do da Aufklärung. O mal não é a simples "privatio bone", mas o objeto muito positivo de uma liberdade malfazeja. Após uma obra em que Kant critica as ilusões de "visionário" de Swedenborg (que pretende tudo saber sobre o além), segue-se a Dissertação de 1770, que vale a seu autor a nomeação para o cargo de professor titular (professor "ordinário", como se diz nas universidades alemãs).
Nela, Kant distingue o conhecimento sensível (que abrange as instituições sensíveis) e o conhecimento inteligível (que trata das idéias metafísicas). Em seguida, surgem as grandes obras da maturidade, onde o criticismo kantiano é exposto. Em 1781, temos a Crítica da Razão Pura, cuja segunda edição, em 1787, explicará suas intenções "críticas" (um estudo sobre os limites do conhecimento). Os prolegômenos a toda metafísica futura (1783) estão para a Crítica da Razão Pura assim como a Investigação sobre o entendimento de Hume está para o Tratado da Natureza Humana: uma simplificação brilhante para o uso de um público mais amplo. A Crítica da Razão Pura explica essencialmente porque as metafísicas são voltadas ao fracasso e porque a razão humana é impotente para conhecer o fundo das coisas. A moral de Kant é exposta nas obras que se seguem: o Fundamento da Metafísica dos Costumes (1785) e a Crítica da Razão Prática (1788). Finalmente, a Crítica do Juízo (1790) trata das noções de beleza (e da arte) e de finalidade, buscando, desse modo, uma passagem que una o mundo da natureza, submetido à necessidade, ao mundo moral onde reina a liberdade.
Kant encontrara proteção e admiração em Frederico II. Seu sucessor, Frederico-Guilherme II, menos independente dos meios devotos, inquietou-se com a obra publicada por Kant em 1793 e que, apesar do título, era profundamente espiritualista e anti-Aufklärung: A religião nos limites da simples razão. Ele fez com que Kant se obrigasse a nunca mais escrever sobre religião, "como súdito fiel de Sua Majestade". Kant, por mais inimigo que fosse da restrição mental, achou que essa promessa só o obrigaria durante o reinado desse príncipe! E, após o advento de Frederico-Guilherme III, não hesitou em tratar, no Conflito das Faculdades (1798), do problema das relações entre a religião natural e a religião revelada! Dentre suas últimas obras citamos A doutrina do direito, A doutrina da virtude e seu Ensaio filosófico sobre a paz perpétua (1795).

A Ciência e a Metafísica

O método de Kant é a "crítica", isto é, a análise reflexiva. Consiste em remontar do conhecimento às condições que o tornam eventualmente legítimo. Em nenhum momento Kant duvida da verdade da física de Newton, assim como do valor das regras morais que sua mãe e seus mestres lhe haviam ensinado. Não estão, todos os bons espíritos, de acordo quanto à verdade das leis de Newton? Do mesmo modo todos concordam que é preciso ser justo, que a coragem vale mais do que do que a covardia, que não se deve mentir, etc... As verdades da ciência newtoniana, assim como as verdades morais, são necessárias (não podem não ser) e universais (valem para todos os homens e em todos os tempos). Mas, sobre que se fundam tais verdades? Em que condições são elas racionalmente justificadas? Em compensação, as verdades da metafísica são objeto de incessantes discussões. Os maiores pensadores estão em desacordo quanto às proposições da metafísica. Por que esse fracasso?
Os juízos rigorosamente verdadeiros, isto é, necessários e universais, são a priori, isto é independentes dos azares da experiência, sempre particular e contigente. À primeira vista, parece evidente que esses juízos a priori são juízos analíticos. Juízo analítico é aquele cujo predicado está contido no sujeito. Um triângulo é uma figura de três ângulos: basta-me analisar a própria definição desse termo para dizê-lo. Em compensação, os juízos sintéticos, aqueles cujo atributo enriquece o sujeito (por exemplo: esta régua é verde), são naturalmente a posteriori; só sei que a régua é verde porque a vi. Eis um conhecimento sintético a posteirori que nada tem de necessário (pois sei que a régua poderia não ser verde) nem de universal (pois todas as réguas não são verdes).
Entretanto, também existem (este enigma é o ponto de partida de Kant) juízos que são, ao mesmo tempo, sintéticos e a priori! Por exemplo:a soma dos ângulos de um triângulo equivale a dois retos. Eis um juízo sintético (o valor dessa soma de ângulos acrescenta algo à idéia de triângulo) que, no entanto, é a priori. De fato eu não tenho necessidade de uma constatação experimental para conhecer essa propriedade. Tomo conhecimento dela sem ter necessidade de medir os ângulos com um transferidor. Faço-o por intermédio de uma demonstração rigorosa. Também em física, eu digo que o aquecimento da água é a causa necessária de sua ebulição (se não houvesse aí senão uma constatação empírica, como acreditou Hume, toda ciência, enquanto verdade necessária e universal, estaria anulada). Como se explica que tais juízos sintéticos e a priori sejam possíveis?
Eu demonstro o valor da soma dos ângulos do triângulo fazendo uma construção no espaço. Mas por que a demonstração se opera tão bem em minha folha de papel quanto no quadro negro... ou quanto no solo em que Sócrates traçava figuras geométricas para um escravo? É porque o espaço, assim como o tempo, é um quadro que faz parte da própria estrutura de meu espírito. O espaço e o tempo são quadros a priori, necessários e universais de minha percepção (o que Kant mostra na primeira parte da Crítica da Razão Pura, denominada Estética transcendental. Estética significa teoria da percepção, enquanto transcendental significa a priori, isto é, simultaneamente anterior à experiência e condição da experiência). O espaço e o tempo não são, para mim, aquisições da experiência. São quadros a priori de meu espírito, nos quais a experiência vem se depositar. Eis por que as construções espaciais do geômetra, por mais sintéticas que sejam, são a priori, necessárias e universais. Mas o caso da física é mais complexo. Aqui, eu falo não só do quadro a priori da experiência, mas, ainda, dos próprios fenômenos que nela ocorrem. Para dizer que o calor faz ferver a água, é preciso que eu constate. Como, então, os juízos do físico podem ser a priori, necessários e universais?
É porque, responde Kant, as regras, as categorias, pelas quais unificamos os fenômenos esparsos na experiência, são exigências a priori do nosso espírito. Os fenômenos, eles próprios, são dados a posteriori, mas o espírito possui, antes de toda experiência concreta, uma exigência de unificação dos fenômenos entre si, uma exigência de explicação por meio de causas e efeitos. Essas categorias são necessárias e universais. O próprio Hume, ao pretender que o hábito é a causa de nossa crença na causalidade, não emprega necessariamente a categoria a priori de causa na crítica que nos oferece? "Todas as intuições sensíveis estão submetidas às categorias como às únicas condições sob as quais a diversidade da intuição pode unificar-se em uma consciência". Assim sendo, a experiência nos fornece a matéria de nosso conhecimento, mas é nosso espírito que, por um lado, dispõe a experiência em seu quadro espacio-temporal (o que Kant mostrará na Estética transcendental) e, por outro, imprime-lhe ordem e coerência por intermédio de suas categorias (o que Kant mostra na Analítica transcendental). Aquilo a que denominamos experiência não é algo que o espírito, tal como cera mole, receberia passivamente. É o próprio espírito que, graças às suas estruturas a priori, constrói a ordem do universo. Tudo o que nos aparece bem relacionado na natureza, foi relacionado pelo espírito humano. É a isto que Kant chama de sua revolução copernicana. Não é o Sol, dissera Copérnico, que gira em torno da Terra, mas é esta que gira em torno daquele. O conhecimento, diz Kant, não é o reflexo do objeto exterior. É o próprio espírito humano que constrói - com os dados do conhecimento sensível - o objeto do seu saber.
Na terceira parte de sua Crítica da Razão Pura, na dialética transcendental, Kant se interroga sobre o valor do conhecimento metafísico. As análises precedentes, ao fundamentar solidamente o conhecimento, limitam o seu alcance. O que é fundamentado é o conhecimento científico, que se limita a por em ordem, graças às categorias, os materiais que lhe são fornecidos pela intuição sensível.
No entanto, diz Kant, é por isso que não conhecemos o fundo das coisas. Só conhecemos o mundo refratado através dos quadros subjetivos do espaço e do tempo. Só conhecemos os fenômenos e não as coisas em si ou noumenos. As únicas intuições de que dispomos são as intuições sensíveis. Sem as categorias, as intuições sensíveis seriam "cegas", isto é, desordenadas e confusas, mas sem as intuições sensíveis concretas as categorias seriam "vazias", isto é, não teriam nada para unificar. Pretender como Platão, Descartes ou Spinoza que a razão humana tem intuições fora e acima do mundo sensível, é passar por "visionário" e se iludir com quimeras: "A pomba ligeira, que em seu vôo livre fende os ares de cuja resistência se ressente, poderia imaginar que voaria ainda melhor no vácuo. Foi assim que Platão se aventurou nas asas das idéias, nos espaços vazios da razão pura. Não se apercebia que, apesar de todos os seus esforços, não abria nenhum caminho, uma vez que não tinha ponto de apoio em que pudesse aplicar suas forças".
Entretanto, a razão não deixa de construir sistemas metafísicos porque sua vocação própria é buscar unificar incessantemente, mesmo além de toda experiência possível. Ela inventa o mito de uma "alma-substância" porque supõe realizada a unificação completa dos meus estados d'alma no tempo e o mito de um Deus criador porque busca um fundamento do mundo que seja a unificação total do que se passa neste mundo... Mas privada de qualquer ponto de apoio na experiência, a razão, como louca, perde-se nas antinomias, demonstrando, contrária e favoravelmente, tanto a tese quanto a antítese (por exemplo: o universo tem um começo? Sim pois o infinito para trás é impossível, daí a necessidade de um ponto de partida. Não, pois eu sempre posso me perguntar: que havia antes do começo do universo?). Enquanto o cientista faz um uso legítimo da causalidade, que ele emprega para unificar fenômenos dados na experiência (aquecimento e ebulição), o metafísico abusa da causalidade na medida em que se afasta deliberadamente da experiência concreta (quando imagino um Deus como causa do mundo, afasto-me da experiência, pois so o mundo é objeto de minha experiência). O princípio da causalidade, convite à descoberta, não deve servir de permissão para inventar.

A Moral de Kant

É só no domínio da moral que a razão poderá, legitimamente, manifestar-se em toda sua pujança. A razão teórica tinha necessidade da experiência para não se perder no vácuo da metafísica. A razão prática, isto é, ética, deve ao contrário, ultrapassar, para ser ela própria, tudo que seja sensível ou empírico.
Toda ação que toma seus móveis da sensibilidade, dos desejos empíricos, é estranha à moral, mesmo que essa ação seja materialmente boa. Por exemplo: se me empenho por alguém por cálculo interessado ou mesmo por afeição, minha conduta não é moral. Com efeito, amanhã, meus cálculos e meus sentimentos espontâneos poderiam levar-me a atos contrários. A vontade que tem por fim o prazer, a felicidade, fica submetida às flutuações de minha natureza. Nesse ponto, Kant se opõe não só ao naturalismo dos filósofos iluministas, mas, também, à ontologia otimista de São Tomás, para quem a felicidade é o fim legítimo de todas as nossas ações. Em Kant, há o que Hegel mais tarde denominará uma visão oral do mundo que afasta a ética dos equívocos da natureza. O imperativo moral não é um imperativo hipotético que submeteria o bem ao desejo (cumpre teu dever se nele satisfazes teu interesse, ou então, se teus sentimentos espontâneos a ele te conduzem), mas o imperativo categórico: Cumpre teu dever incondicionalmente.
Em que consiste esse dever? Uma vez que as leis que a Razão se impõe não podem, em nenhum caso, receber um conteúdo da experiência e que devem exprimir a autonomia da razão pura prática, as regras morais só podem consistir na própria forma da lei. "Age sempre de tal maneira que a máxima de tua ação possa ser erigida em regra universal" (primeira regra). O respeito pela razão estende-se ao sujeito racional: "Age sempre de maneira a tratares a humanidade em ti e nos outros sempre ao mesmo tempo como um fim e jamais como um simples meio" (segunda regra). Desse modo, o princípio do dever, para ser absolutamente rigoroso, não implica em nenhuma "alienação", como diríamos hoje, em nenhuma "heteronomia", como diz Kant.
Para se unirem numa justa reciprocidade de direitos e obrigações, os homens só têm que obedecer às exigências de sua própria razão: "Age como se fosses ao mesmo tempo legislador e súdito na república das vontades" (terceira regra).
O único sentimento que tem por si mesmo um valor moral nessa ética racionalista é o sentimento do respeito, pois não é anterior à lei, mas é a própria lei moral que o produz em mim; ele me engrandece, ele me realiza como ser racional que obedece à lei moral. Vimos que, pelo fato de ser puramente formal, essa moral não me propõe, efetivamente, um ato concreto a realizar. Ela simplesmente autoriza ou proíbe este ou aquele ato que tenho vontade de praticar. Por exemplo, vejo de imediato que não tenho o direito de mentir, mesmo que me diga: e se todos fizessem o mesmo? A mentira de todos para com todos é contraditória, portanto, proibída. A moral formal, por conseguinte, apresenta-se como essencialmente negativa. Como diz Jan Kélévitch, o imperativo categórico é um "proibitivo categórico".
A moral de Kant, ao privilegiar a razão humana, exprime sua desconfiança com relação à natureza humana, aos instintos, às tendências de tudo o que é empírico, passivo, passional, ou, como diz Kant, patológico. Tal é o rigoríssimo kantiano. A razão fala sobre a forma severa do dever porque é preciso impor silêncio à natureza carnal, porque é preciso, ao preço de grande esforço, submeter a humana vontade à lei do dever. Por conseguinte, o domínio da moral não é o da natureza (submissão animal aos instintos) nem o da santidade (em que a natureza, transfigurada pela graça, sentiria uma atração instintiva e irresistível pelos valores morais). O mérito moral é medido precisamente pelo esforço que fazemos para submeter nossa natureza às exigências do dever.

Moral e Metafísica

A moral de Kant é o que chamamos de uma moral independente. Ela não possui outro fundamento além da consciência humana, essa consciência que é essencialmente razão. Mesmo que o universo não tenha o menor sentido, mesmo que a alma seja mortal, o discípulo de Kant se sabe obrigado a respeitas as máximas da razão.
Todavia, Kant vai reerguer a metafísica - essa metafísica cuja demonstração era impossível, segunda a crítica da razão pura. A originalidade de Kant está no fato de que, ao invés de buscar os fundamentos de sua moral na metafísica, ele vai estabelecer os fundamentos de uma metafísica na moral, a título de "postulados da razão prática". Por exemplo: o dever me prescreve a realização de certa perfeição moral que não consigo atingir na vida presente (posto que não chego a purificar totalmente a determinação de querer dos móveis sensíveis). Kant então postula a imortalidade da alma.
Por outro lado, Kant constata que a virtude e a felicidade quase não estão juntas, neste mundo em que, de um modo geral, os maus são muito prósperos. Ele então postula que um Deus justiceiro, por intermédio de um sistema de recompensa e punições, restabelecerá no além a harmonia entre virtude e felicidade.
Finalmente, partindo da consciência da obrigação moral, Kant vai postular a liberdade humana. Com efeito, a obrigação moral exclui a necessidade dos atos humanos. A obrigação não teria o menor sentido se minha conduta fosse automaticamente determinada por minhas tendências ou pelas influências que sofri. Ser moralmente obrigado é ter o poder de responder sim ou não à regra moral, é ter a liberdade de escolher entre o bem e o mal. "Tu deves, diz Kant, então podes."
Esta liberdade não poderia ser demonstrada. No plano dos fenômenos, isto é, da experiência, do que hoje denominamos ciência psicológica, eu vejo que meus atos, ao contrário, são determinados uns pelos outros no tempo. Aquele crime pode ser explicado pelas paixões de seu autor, pela deplorável educação que recebeu, etc... E, no entanto, o homem se sente responsável, por conseguinte, livre. Não esqueçamos que o mundo dos fenômenos, isto é, do determinismo, é um mundo de aparências. Por trás desse determinismo aparente, pelo qual o mundo se me apresenta no conhecimento, esconde-se a realidade numenal de minha liberdade. Por conseguinte, é fora do tempo, é nas profundezas do ser inacessível ao saber científico, que o mau escolheu livremente o seu caráter de mau. Em tal sistema, portanto, não existe liberdade parcial nem meia-responsabilidade. Totalmente determinados nas aparências fenomenais, seríamos totalmente livres em nossa realidade numenal: daí se segue que nenhum pecado poderia ser escusável.

A Crítica do Juízo

Desse modo, a filosofia de Kant nos surge como uma filosofia essencialmente trágica, já que afirma simultaneamente a necessidade da natureza (na Crítica da Razão Pura) e a exigência de uma liberdade absoluta (na Crítica da Razão Prática).
Em sua terceira grande obra, A Crítica do Juízo, Kant se esforça por mostrar a possibilidade de uma reconciliação entre o mundo natural e o da liberdade. A natureza não seja talvez não seja apenas o domínio do determinismo, mas também o da finalidade que aparece notadamente na organização harmoniosa dos seres vivos. Todavia, se o princípio de causalidade (determinismo) é constitutivo da experiência (não posso dispensá-lo para explicar a natureza), o princípio de finalidade permanece facultativo, puramente regulador (posso interpretar o agrupamento de certas condições como a manifestação de um fim). Tudo se passa como se o pássaro fosse feito para voar, mas uma coisa apenas é certa: o pássaro voa porque é constituído de tal maneira.
Os valores de beleza, presentes na obra de arte, igualmente nos oferecem uma espécie de reconciliação entre a razão e a imaginação, já que, na contemplação estética, a bela aparência que admiramos parece inteiramente penetrada dos valores do espírito. Finalidade sem fim (isto é, harmonia pura, fora de todo móvel exterior à obra de arte), a beleza oferece à nossa imaginação a oportunidade de uma satisfação inteiramente desinteressada. Ela é, no mundo kantiano, o exemplo único de uma satisfação ao mesmo tempo sensível e pura de todo egoísmo, o momento privilegiado em que uma emoção, longe de manifestar meu egoísmo dominador, dele me liberta e, como se diz muito bem, me "arrebata".

O Alcance da Crítica Kantiana
(Prefácio da 2.ª edição da Crítica da Razão Pura)

Um rápido olhar lançado nesta obra levará a pensar, de início, que sua utilidade é inteiramente negativa ou que ela só serve para nos impedir de conduzir a razão especulativa além dos limites da experiência, e é isso que lhe dá sua primeira utilidade. Mas logo se perceberá também que sua utilidade é positiva, pelo fato mesmo de os princípios sobre os quais se apóia a razão especulativa, para se aventurar fora de seus limites, na realidade terem por conseqüência inevitável não a extensão, mas, olhando mais de perto, a restrição do uso de nossa razão. É que, com efeito, esses princípios ameaçam de tudo enfeixar nos limites da sensibilidade, da qual propriamente dependem, e assim reduzir a nada o uso puro (prático) da razão. Ora, uma crítica que limita a razão em seu uso especulativo é, por esse lado, bem negativa; mas, ao suprimir com um mesmo golpe o obstáculo que restringe seu uso prático ou que até ameaça anulá-la, essa crítica, de fato, tem uma utilidade positiva da mais alta importância. É o que se reconhecerá logo que se esteja convencido de que a razão pura tem um uso prático absolutamente necessário (quero significar o uso moral), no qual ela se estende inevitavelmente além dos limites da sensibilidade e no qual, sem para isso ter necessidade do auxílio da razão especulativa, a razão prática, porém, quer estar assegurada contra toda oposição de sua parte, a fim de não cair em contradição consigo mesma. Negar que a crítica, ao prestar-nos esse serviço, tenha uma utilidade positiva, porque sua função consiste unicamente em fechar as portas à violência que os cidadãos poderiam temer uns aos outros, a fim de que cada um possa realizar seus negócios tranqüilamente e em segurança. Que o espaço e o tempo só sejam formas da intuição sensível e, conseqüentemente, das condições da existência das coisas como fenômenos; que, além disso, não tenhamos conceitos do entendimento e, portanto, quaisquer elementos para o conhecimento das coisas, sem que uma intuição correspondente nos seja dada, e que, por conseguinte, não possamos conhecer nenhum objeto como coisa em si, mas apenas como objeto da intuição sensível, isto é, como fenômeno, é o que será provado na parte analítica e daí resultará que todo conhecimento especulativo possível da razão se reduz unicamente aos objetos da experiência. Mas, o que é preciso marcar bem, surge aí uma reserva: é que, se não podemos conhecer esses objetos como coisas em si, podemos ao menos pensá-los como tais.
Se assim não fora, chegaríamos à absurda proposição de que existem fenômenos ou aparências sem que haja nada que apareça. Quando se supõe que nossa crítica não tenha feito a distinção que ela estabelece necessariamente entre as coisas como objetos de experiência e essas coisas como objetos em si, será preciso então que se estenda a todas as coisas em geral, consideradas como causas eficientes, o princípio da causalidade e, conseqüentemente, o mecanismo natural que ele determina. Por conseguinte, eu não poderia dizer do próprio ser, por exemplo, da alma humana, que sua vontade é livre e que, entretanto, está submetida à necessidade física, isto é, que não é livre, sem cair em evidente contradição, É que, nas duas proposições, tomei a alma no mesmo sentido, isto é, como uma coisa em geral (como objeto em si) e, sem as advertências da crítica, não poderia encará-la de outro modo.
Mas se a crítica não se enganou ao ensinar-nos a considerar o objeto em dois sentidos diferentes, como fenômeno e como coisa em si; se a dedução dos conceitos do entendimento é exata e se, conseqüentemente, o princípio da causalidade só se aplica às coisas no primeiro sentido, ao passo que no segundo sentido essas mesmas coisas não mais lhe estejam submetidas, a mesma vontade pode ser concebida, sem contradição, de um lado, como estando necessariamente submetida, do ponto de vista fenomenal (em seus atos visíveis), à lei física, conseqüentemente, como não sendo livre e, de outro, enquanto faz parte das coisas em si, como escapando a essa lei, por conseguinte, como livre. Ora, embora sob esse último ponto de vista eu não possa conhecer minha alma por intermédio da razão especulativa (e ainda menos pela observação empírica) e, conseqüentemente, eu também possa conhecer a liberdade como a propriedade de um ser ao qual atribuo efeitos no mundo sensível - posto que seria necessário que eu a conhecesse de uma maneira determinada em sua existência, mas não no tempo (o que é impossível, pois aqui nenhuma intuição pode ser submetida ao meu conceito) - eu posso, no entanto, pensar a liberdade, isto é, que sua idéia não contém a menor contradição, desde que admita nossa distinção crítica dos dois modos de representação (o modo sensível e o intelectual), assim como a restrição que daí deriva relativamente aos conceitos puros do entendimento e, por conseguinte, aos princípios decorrentes desses conceitos. Admitamos agora que a moral supõe necessariamente a liberdade (no sentido mais estrito) como uma propriedade de nossa vontade, colocando a priori como dados da razão princípios práticos que dela se originam e que, sem essa suposição, seriam absolutamente impossíveis; mas admitamos também que a razão especulativa tenha provado que a liberdade não fosse de modo algum concebida; será preciso então que necessariamente a suposição moral dê lugar àquela cujo contrário implica em evidente contradição, isto é, que a liberdade, e com ela a moralidade (cujo contrário não implica em contradição, quando não se supõe a liberdade previamente), desaparecem no mecanismo da natureza. Todavia, como é suficiente que, do ponto de vista da moral, a liberdade não seja contraditória e que, conseqüentemente, ela possa ser concebida, e como, desde que não se coloque como obstáculo ao mecanismo natural da própria ação (tomados num outro sentido), não há necessidade de se lhe ter um conhecimento mais amplo, a moral pode manter sua posição enquanto a física conserva a sua. Ora, é o que não teríamos descoberto se a crítica não nos houvesse previamente instruído sobre nossa inevitável ignorância relativamente às coisas em si e se ela não houvesse limitado aos simples fenômenos todo nosso conhecimento teórico. Desse modo, pode-se mostrar essa mesma utilidade dos princípios críticos da razão pura relativamente à idéia de Deus, a liberdade e a imoratalidade segundo a necessidade que minha razão tem em seu uso prático necessário, sem rechaçar ao mesmo tempo as pretensões da razão especulativa em suas visões transcendentes; pois, para chegar aí, lhe é necessário empregar princípios que na realidade só se aplicam a objetos da experiência sensível e que sempre transformam em fenômenos aquilo a que se aplicam, mesmo que esse algo não possa ser um objeto de experiência, e desse modo declaram impossível toda extensão prática da razão pura. Tive então que suprimir o saber para substituí-lo pela crença.


Crítica ao Argumento Ontológico
(Crítica da Razão Pura, Dialética Transcendental)

Cem táleres reais não contêm mais do que cem táleres possíveis. Pois, como os táleres possíveis exprimem o conceito e os reais o objeto e sua posição em si mesma, meu conceito não exprimiria o objeto inteiramente e conseqüentemente não estaria de acordo com ele, caso o objeto contivesse mais do que o conceito. Mas sou mais rico com cem táleres reais do que com sua idéia (isto é, se eles são simplesmente possíveis). De fato, o objeto na realidade não está simplesmente contido de uma maneira analítica em meu conceito, mas ele enriqueceu sinteticamente meu conceito (que é uma determinação do meu estado), sem que os cem táleres concebidos sejam aumentados por este ser que está situado fora do meu conceito.
Quando, então, eu concebo uma coisa, quaisquer que sejam e por mais numerosos que sejam os predicados por meio dos quais eu a concebo (mesmo que a determine completamente), e só por isso eu acrescente que essa coisa existe, eu não estarei acrescentando absolutamente nada à coisa. Se assim fora, não existiria mais a mesma coisa, mas algo além do que pensei no conceito; e eu não mais poderia dizer que é exatamente o objeto do meu conceito que existe. Se numa coisa eu concebo toda realidade, exceto uma, e pelo fato de dizer que essa coisa defeituosa existe, a realidade que lhe falta não lhe será acrescentada por isto; mas ela existe precisamente tão defeituosa quanto a concebo, pois, de outro modo, existiria outra coisa diferente do que concebi. Se, por conseguinte, eu concebo um ser como a suprema realidade (sem falhas), sempre resta saber se esse ser existe ou não. De fato, embora em meu conceito não falte nada do conteúdo real possível de uma coisa em geral, ainda falta, porém, alguma coisa com relação a todo meu estado intelectual, a saber, que o conhecimento de um objeto seja possível a posteriori. E aqui se mostra a causa da dificuldade que reina nesse ponto. Se se tratasse de um objeto dos sentidos, eu não poderia confundir a existência da coisa com seu simples conceito. De fato, o conceito só me faz conceber o objeto como concordante com as condições universais de um conhecimento empírico possível em geral, enquanto a existência me faz concebê-lo como compreendido no contexto de toda experiência; e, se o conceito do objeto não é de modo algum aumentado para sua ligação com o conteúdo de toda experiência, nosso pensamento dele recebe em acréscimo mais percepção possível. Se, ao contrário, quisermos pensar a existência unicamente por intermédio da pura categoria, não será de espantar que não possamos indicar nenhum critério que sirva para distingui-la da simples possibilidade.
Qualquer que seja a natureza e a extensão do conteúdo de nosso conceito de um objeto, somos obrigados a sair desse conceito para lhe atribuir a existência. Com relação a objetos sensíveis, a passagem se faz por meio do encadeamento que liga o conceito a alguma de minhas percepções, segundo as leis empíricas; mas, para os objetos do pensamento puro, não existe nenhum meio de reconhecer sua existência, já que seria preciso reconhecê-la inteiramente a priori; nossa consciência de toda existência (quer ela resulte imediatamente da percepção, quer resulte de raciocínios que unem alguma coisa à percepção) pertence inteiramente à unidade da experiência, e se uma existência fora desse campo não deve ser tida por absolutamente impossível, ela também não deixa de ser uma suposição que nada pode justificar.
O conceito de um ser supremo é uma idéia muito útil com relação a muitas coisas, mas, precisamente porque é apenas uma idéia, ele é inteiramente incapaz de estender a si só nosso conhecimento com relação ao que existe. Nem pode mesmo nos instruir o suficiente com relação à possibilidade. É certo que o caráter analítico da possibilidade - que consiste no fato de que simples posições (realidades) não engendram contradição - não lhe pode ser contestado; mas, como a ligação de todas as propriedades reais numa coisa é uma síntese cuja possibilidade não podemos julgar a priori, posto que as realidades não nos são dadas especificamente, e, mesmo que isso acontecesse, que não resultaria daí nenhum juízo, o caráter da possibilidade dos conhecimentos sintéticos que deve ser sempre buscado na experiência, à qual o objeto de uma idéia não pode pertencer, faz-se muito necessário que o ilustre Leibnitz tenha feito aquilo de que se orgulhava, isto é, chegar a conhecer a priori a possibilidade de um ser ideal tão elevado.
Essa prova ontológica (cartesiana) tão glorificada, que pretende demonstrar por meio de conceitos a existência de um ser supremo, perde, então, todo seu valor e não nos tornaremos mais ricos em conhecimentos com simples idéias quanto um comerciante não se tornaria em dinheiro se, com o pensamento de aumentar sua fortuna, ele acrescentasse alguns zeros em seu livro de caixa.


O Rigorismo de Kant
(Fundamento da Metafísica dos Costumes)

Conservar a própria vida é um dever e, além disso, é uma coisa para a qual todos possuem uma inclinação imediata. Ora, é por isso que a solicitude, freqüentemente inquieta, com que a maior parte dos homens se dedica a isso, não é menos desprovida de todo valor intrínseco e é por isso que sua máxima não possui nenhum valor moral. É certo que eles conservam sua vida de acordo com o dever, mas não por dever. Em compensação, quando contrariedades ou uma aflição sem esperança tenha roubado de um homem todo gosto de viver e se o infeliz, com ânimo forte, fica muito mais indignado com sua sorte do que desencorajado ou abatido, se deseja a morte e, no entanto, conserva a vida sem amá-la, não por inclinação ou temor, mas por dever, então sua máxima possui um valor moral.
Ser bom, quando se pode, é um dever e, ademais, existem certas almas tão capacitadas para a simpatia que, mesmo sem qualquer motivo de vaidade ou de interesse, elas experimentam uma satisfação íntima em irradiar alegria em torno de si e vivem o contentamento de outrem, na medida em que ele é obra sua. Mas eu acho que no caso de uma ação desse tipo, por mais de acordo com o dever e mais amável que seja, não possui porém verdadeiro valor moral, já que ela se coloca no mesmo plano de outras inclinações, a ambição, por exemplo, que, quando coincide com o que realmente está de acordo com o interesse público e o dever, com o que, por conseguinte, é honorável, merece louvor e encorajamento, mas não respeito, pois falta a essa máxima o valor moral, isto é, o fato de que essas ações sejam feitas não por inclinação, mas por dever. Suponha-se então que a alma daquele filantropo esteja ensombrada por um desses desgostos pessoais que sufocam toda simpatia pela sorte de outrem e que ele sempre ainda tenha o poder de fazer bem a outros infelizes, mas que não seja tocado pelo infortúnio dos outros, por estar demasiado absorvido pelo seu próprio, e que nessas condições em que nenhuma inclinação não mais o leve a isso, ele porém se arranque dessa insensibilidade mortal e aja, livre da influência de qualquer inclinação, unicamente por dever; então, só então sua ação terá verdadeiro valor moral. E digo mais: se a natureza tivesse colocado no coração deste ou daquele um pouco de simpatia, se aquele homem (honesto de resto) fosse frio por temperamento e indiferente aos sofrimentos de outrem, talvez porque, tendo para com seus próprios sofrimentos um dom especial de resistência e de paciente energia, ele suponha que também nos outros, ou deles exija as mesmas qualidades; se a natureza não tivesse formado esse homem particularmente o que na verdade não seria sua obra pior) para fazer dele um filantropo, não encontraria ele, então, em si próprio o meio de se dar um valor muito superior ao que possa ter um temperamento naturalmente bonsoso? Certamente! E á aqui precisamente que surge o valor do caráter, valor moral e incomparavelmente o mais elevado, que provém daquele que faz o bem não por inclinação, mas por dever.
Assegurar a própria felicidade é um dever (indireto, ao menos); pois, o fato de não estar contente com a própria situação, com o viver pressionado por inúmeros cuidados em meio de necessidades não satisfeitas, poderia facilmente tornar-se uma grande tentação de violar seus deveres. Mas, aqui ainda, sem pensar no dever, todos os homens já têm, por eles próprios, a inclinação para a felicidade mais duradoura e mais íntima, pois, precisamente nessa idéia de felicidade, as inclinações se unificam numa totalidade. Ocorre apenas que o preceito que ordena o tornar-se feliz muitas vezes assume tal caráter, que traz grande prejuízo a algumas inclinações, e, contudo, o homem não pode fazer um conceito definido e certo dessa soma de satisfações a ser dada a todas a que chama de felicidade; desse modo, não há por que se surpreender que uma inclinação única, determinada quanto ao que promete e quanto à época em que pode ser satisfeita, possa levar vantagem sobre uma idéia flutuante, que, por exemplo, uma pessoa que sofre de gota possa gostar mais de saborear o que é de seu gosto e sofra em seguida, pois, segundo seu cálculo, ao menos nessa circunstância ela não se privou, por causa da talvez enganosa esperança de uma felicidade a ser encontrada na saúde, do gozo do momento presente. Mas, nesse caso igualmente, se atendência universal não determinasse sua vontade, se a saúde, para ela ao menos, não fosse coisa tão importante de fazer entrar em seus cálculos, o que restaria ainda aqui, como em todos os outros casos, seria uma lei, uma lei que ordena trabalhar para a própria felicidade não por inclinação, mas por dever, e é por isto somente que sua conduta possui um verdadeiro valor moral.
Assim, devem ser certa e igualmente compreendidas as passagens da Escritura em que é ordenado amar ao próximo, ainda que inimigo. Pois, o amor como inclinação não pode ser ordenado; mas fazer o bem precisamente por dever, na medida em que não há inclinação que nos conduza a isso, e mesmo que uma aversão natural e invencível a isto se oponha, eis aí um amor prático e não patológico, que reside na vontade e não na tendência da sensibilidade, em princípios da ação e não numa compaixão debilitante; ora, esse amor é o único que pode ser ordenado.

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