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sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

A Eficácia horizontal dos direitos fundamentais e a funcionalização do Direito

Rodrigo Andrade de Almeida[1]

INTRODUÇÃO

O tema da eficácia horizontal dos direitos fundamentais é hodiernamente recorrente nos manuais de direito civil, assim como em recentes obras dedicadas ao estudo do neoconstitucionalismo e de teoria do direito. No Brasil, as discussões acerca do assunto tiveram início com a promulgação da Constituição Federal de 1988, e se intensificaram a partir da edição do Código Civil, em 2002.Não obstante a relativa novidade do tema entre nós, sua discussão está inserida no bojo de um amplo movimento teórico iniciado na Europa, pouco depois do fim da Segunda Grande Guerra, e traz à tona, dentre outras coisas, antigas questões de filosofia do direito, como as relações entre o direito e a moral e a dicotomia entre direito público e direito privado.O presente artigo tem, portanto, como objetivo, apresentar algumas possíveis relações existentes entre o chamado movimento de funcionalização do direito, a relativização da dicotomia entre direito público e direito privado e a questão da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, e analisar se esta última pode ser considerada uma teoria ou uma ideologia do direito.

1. A FUNCIONALIZAÇÃO DO DIREITO E A RELATIVIZAÇÃO DA DICOTOMIA ENTRE DIREITO PÚBLICO E DIREITO PRIVADO

A chamada funcionalização do direito é um fenômeno que guarda estreita relação com a mitigação da dicotomia entre direito público e privado, uma vez que é aquela a causa desta. Tal dicotomia é antiga: data do direito romano e sua teorização deve-se ao jurisconsulto Ulpiano, por volta do século II da Era Cristã.[2]

Já nos séculos XVII e XVIII, a dicotomia entre o direito público e o direito privado foi retomada, sobretudo a partir da obra de John Locke, com o objetivo de construir uma teoria liberal do Estado que assegurasse ao indivíduo o pleno exercício de sua autonomia privada, garantido por um Estado mínimo constitucionalizado. O indivíduo, segundo essa visão, é possuidor de uma série de direitos inatos que, no estado de natureza, não têm efetividade, por não existir uma organização supra-individual que garanta sua observância pelos demais. Assim, no contratualismo de Locke, os indivíduos teriam constituído a sociedade civil exatamente com o fito de dar efetividade aos direitos naturais; a sociedade constituída, portanto, seria composta de duas dimensões: uma pública e outra privada.A dimensão pública seria formada pelo Estado, e teria como estatuto jurídico a Constituição, entendida como uma mera carta política, que teria como finalidades definir a estrutura do Estado e elencar os direitos e garantias individuais.A dimensão privada seria formada pela autonomia da vontade, tida como a ampla esfera das liberdades individuais, que teria como estatuto jurídico o Código Civil, cuja finalidade seria regular toda a vida privada do indivíduo, desde antes do seu nascimento, até após a sua morte.

Essas duas dimensões eram tidas como absolutamente distintas uma da outra. A Constituição, enquanto estatuto jurídico do Direito Público, seria apta a regular tão-somente a relação do indivíduo com o Estado, e não teria nenhuma aplicabilidade nas relações entre os indivíduos; o Código Civil, por sua vez, era tido como uma verdadeira “constituição do direito privado”, em nada sofrendo interferências do direito público e do Estado.[3] É fácil perceber, diante disso, a força e intensidade da dicotomia entre o público e o privado a partir do século XVIII, e movimentos como o exegetismo francês, de inícios do século XIX, demonstram a supremacia do Código Civil como instrumento de normatização da vida privada naquela época.[4]

Para além da intensificação da dicotomia entre o direito público e o privado, a segunda metade do século XIX e a primeira metade do Século XX representaram a era áurea do positivismo jurídico, enquanto metodologia, teoria e ideologia do direito.[5]

Nesse sentido, a idéia de abordar o direito de forma neutra e excluindo de sua análise quaisquer valorações de cunho moral, político ou social ganhou adeptos em toda parte, não se podendo deixar de mencionar aqui o mais famoso ícone dessa teoria, o jurista austríaco Hans Kelsen.[6]

Ocorre que, com o fim da Segunda Guerra e com a derrocada do nazi-fascismo na Europa, parte dos teóricos do direito começou a se mostrar extremamente cética em relação à proposta metodológica juspositivista, e passou a considerar premente a necessidade de se levar em consideração aspectos morais na definição do próprio direito. Essa idéia tornou-se ainda mais difundida quando as novas constituições, surgidas do processo de redemocratização da Europa, passaram a incorporar, de forma explícita e enfática, as pautas morais de suas respectivas sociedades, em larga medida inspiradas pelas Declarações de Direitos da ONU e demais organismos internacionais. Diante disso, as sociedades ocidentais do pós-guerra chegaram à conclusão de que não basta dar ao direito uma forma; é necessário, ao lado disso, explicitar-lhe a função. É a partir dessa noção que se fala, hoje em dia, em “funcionalização do direito”.[7]

As constituições democráticas do pós-guerra, portanto, e no caso brasileiro a Constituição de 1988, ocupam-se não apenas da estrutura do Estado e do elenco de direitos e garantias fundamentais; disciplinam, interferem e impõem limites ao próprio exercício da autonomia privada. São célebres, no caso brasileiro, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), o princípio da solidariedade (art. 3º, I), a função social da propriedade (art. 5º, XXIII e art. 170, III), além de inúmeros outros dispositivos que poderiam ser aqui citados.A partir de então tem-se uma Constituição que, além de carta política, consubstancia a pauta moral vigente na sociedade. A luta dos teóricos passa a ser, assim, torná-la efetiva. Em conseqüência, a pergunta que se coloca é a seguinte: como tornar efetiva a pauta moral vigente na sociedade e enunciada no texto constitucional?

Um primeiro passo no sentido de responder à pergunta posta é a adoção da perspectiva de ordenamento jurídico dinâmico de Kelsen, ou seja, a noção de hierarquia de normas, com o intuito de colocar a Constituição no topo do sistema, e submeter todos os ramos do direito, inclusive o direito privado, à principiologia constitucional. Essa é uma das dimensões do chamado neoconstitucionalismo, movimento teórico e político que caminha lado a lado com as teorias pós-positivistas.[8]

O Código Civil Brasileiro de 2002 adotou essa nova perspectiva, e incluiu em seu texto inúmeros princípios oriundos da sistemática constitucional, como a própria função social da propriedade, do contrato, boa-fé objetiva (e não mais subjetiva, como outrora), transformando-os em verdadeiros limites à autonomia da vontade, talvez o mais importante dogma do direito privado moderno.Ora, uma vez que se passou a ter, de um lado, normas de direito privado na Constituição e, por outro, normas de direito público no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, tem-se uma mitigação da dicotomia entre o público e o privado, e uma relativização da distinção entre essas duas esferas.Partindo dessa premissa, tem-se hoje uma verdadeira revisita aos principais institutos do direito privado, no sentido de adequá-los à sistemática constitucional, sobretudo no que se refere à efetividade dos direitos fundamentais. Aqui é necessário fazer algumas considerações.

2. A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Quando se fala em “direitos fundamentais”, a imagem que geralmente vem à mente é aquela de uma relação vertical entre o Estado e o indivíduo, ou seja, os direitos fundamentais são direitos que o indivíduo tem em face do Estado. Essa, pelo menos, é a noção clássica que se tem de direitos fundamentais, e quando se fala em “efetividade dos direitos fundamentais”, geralmente se está referindo a meios ou instrumentos capazes de fazer o Estado respeitar e tornar efetivos os direitos fundamentais titularizados pelo indivíduo.Não obstante essa clássica noção de direitos fundamentais, diante das transformações no direito privado referido acima, fala-se, hoje, em eficácia horizontal dos direitos fundamentais: o que isso significa, de fato?Em linhas muito gerais, o raciocínio é o seguinte: todos os direitos fundamentais decorrem, de alguma maneira, do princípio da dignidade da pessoa humana; se os direitos fundamentais refletem a pauta moral vigente na sociedade, então sua observância, respeito e efetividade não devem se restringir ao Estado, mas a toda e qualquer relação jurídica, seja ela de direito público ou de direito privado! Em outras palavras, isso significa que os direitos fundamentais devem ter uma eficácia vertical, nas relações do indivíduo com o Estado, e uma eficácia também horizontal, nas relações dos indivíduos entre si. Dito ainda de outro modo, o que se pretende é que, naqueles casos em que um contrato, por exemplo, viole direito fundamental de um dos contratantes, o Estado interfira nessa relação para salvaguardar a efetividade do direito fundamental violado. Há dois exemplos que ilustram essa situação.

O primeiro ocorreu na França. Uma casa noturna contratou anões, e os clientes, enquanto bebiam e dançavam, podiam “brincar” de arremessá-los de um lado a outro do recinto. A Autoridade Pública francesa interditou o estabelecimento, alegando que a prática feria a dignidade humana. Os anões recorreram, em litisconsórcio com o bar, alegando que concordavam com a prática e que viviam desse trabalho. Não adiantou.[9]

O outro exemplo ocorreu no Brasil. No Rio de Janeiro, uma associação de compositores resolveu expulsar um de seus membros. Ele propôs uma ação pedindo a anulação da expulsão, e o STJ julgou procedente o pedido, alegando que não lhe foi dado o direito à ampla defesa e ao contraditório, direitos processuais fundamentais.

A questão chega com tanta força no direito civil, que a doutrina já fala em função social da propriedade, da responsabilidade civil, da família, da empresa, e até mesmo em função social das sucessões. Muitos doutrinadores defendem que o paradigma jusprivatista mudou, deixando de ser patrimonialista pra se tornar personalista.[10]

O principal argumento que os teóricos utilizam pra fundamentar esse novo paradigma é a centralidade que assumiu no ordenamento jurídico o princípio da dignidade da pessoa humana. Assim, segundo eles, a dignidade humana seria o “princípio dos princípios”, o verdadeiro “norte axiológico” da Constituição e de todo o ordenamento jurídico, representando o mais fundamental dos valores e maior objetivo da sociedade brasileira, e das sociedades ocidentais de uma forma geral, já que a dignidade humana está presente em praticamente todos os sistemas jurídicos do Ocidente e nas principais declarações de direitos e tratados internacionais.Segundo esse argumento, portanto, todos os direitos fundamentais decorrem do princípio da dignidade humana, o que implica em admitir que o ser humano ocupa, assim, o centro de todo o ordenamento jurídico, estando acima de quaisquer interesses patrimoniais. CONCLUSÃO A proposta neoconstitucionalista parece interessante; contudo, do ponto de vista metodológico, não se pode deixar de reconhecer que só é possível admiti-la partindo-se de dois pressupostos: (1) a tese juspositivista da separação metodológica entre o direito e a moral deve ser afastada, e se torna admissível, e até mesmo desejável, para os teóricos que defendem essa teoria, que o sistema jurídico se comunique constantemente com o sistema moral; (2) como o conteúdo do princípio da dignidade humana é indefinido, é precisamente ele que deve servir como elo de ligação entre o direito e a moral, sobretudo no momento da aplicação do direito.Isso, por si só, é suficiente para gerar uma enorme polêmica em torno do tema, e a análise dos argumentos contrários e favoráveis à adoção dessas duas premissas extrapola os objetivos do presente trabalho.Não obstante, cumpre ressaltar que toda essa discussão somente se tornou possível, do ponto de vista teórico, diante da centralidade assumida pela Constituição no direito contemporâneo, e pela inclusão em seu texto de conteúdo eminentemente moral, com o intuito mesmo de transformar a Constituição em uma verdadeira pauta moral da sociedade e no norte axiológico de todo o ordenamento jurídico.Isso implicou incluir, no texto constitucional, normas de conteúdo tipicamente jusprivatista, o que contribuiu para mitigar a clássica dicotomia entre o direito público e o direito privado, fazendo com que o próprio Código Civil fosse “povoado” por normas de direito público.A discussão é interessante, e ainda relativamente recente, sobretudo no Brasil. Abre-se, assim, um campo bastante promissor para pesquisas, e a tendência, pelo menos pelo que indica a análise da doutrina mais recente, é a de que o debate cresça e se intensifique.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995.
__________. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Barueri: Manole, 2007.
CARBONELL, Miguel (org.). “Neoconstitucionalismo(s). 2.ed. Madrid: Trota, 2003.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das obrigações. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. 4.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.
LOSANO, Mario G. Hans Kelsen: una biografía cultural mínima. in.: “Derechos y Libertades”. Revista del Instituto Bartolomé de las Casas, XIV. Madrid, 2005.

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[1]
Professor do curso de Direito do Centro Universitário Jorge Amado (UNIJORGE-BA); membro e professor orientador do Grupo de Pesquisas em Filosofia, Direito e Constituição (www.teoriadodireito.com.br); Advogado em Salvador (BA).
[2]

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